Corria o Ano de 2000, em meados de Abril. Neste dia que morria fazia dezoito anos, dezoito anos que palmilhava a face da Terra.
Decidi dar um passeio pela aldeia que me viu nascer e crescer. Já passava da meia-noite. Pelo caminho encontrei um pequeno desvio ocultado pela formosura dos arbustos que pintalgavam o caminho. Desvio que desembocava numa enseada junto à praia. Muitas vezes havia palmilhado aqueles caminhos, mas este nunca antes tinha descoberto.
Avancei até à beira mar e, subitamente, reparei na figura de anjo, de olhos azuis como o mar que beijava os seus pés descalços, os seus lábios vermelhos como o sangue que me enchia de vida, e o seu corpos esbelto e de delicados traços.
Logo impelido pela sangue que me fervia nas veias tentei conversa com tal anjo. Ainda hoje recordo o jeito meio tímido com que me respondeu, a sua conversa simpática e inteligente. Durante esses instantes descobri que os seus pais tinham sido acusados de serem seguidores de uma qualquer seita satânica e tinham sido expulsos da aldeia onde viviam, acabando por encontrar refugio na floresta.
Desde então eu fora a única pessoa com quem se cruzara até hoje. O tempo voava! Já a manhã acordava e a noite fugia daquela enseada esquecida. Despedimo-nos e eu fui directo a casa.
Desse dia em diante passamos a encontrar-nos frequentemente no mesmo local. Todos os dias conversávamos iluminados pela doce luz da lua, aquecidos pelo vento quente que murmurava nas veredas e embalados pela leve brisa salgada que o mar respirava. Todos os dias passeávamos juntos ao longo da costa.
Tudo parecia idílico. Excepto à Sexta-Feira.
Todas as Sextas-Feiras eu me deslocava até à praia e nunca a encontrava. Com o coração toldado pela saudades, desmoralizado pela sua ausência retomava para casa. Mas no outro dia voltava a poder admirar aquela beleza que me fascinava, os seus longos cabelos loiros, sentir o doce da sua inocência. Sentir o toque daquele bela e doce criatura que me tinha cativo de si, como nunca outra antes o tinha feito...
Mas uma nuvem veio ensombrar a minha alegria: na aldeia corriam rumores que uma donzela atraia jovens até à praia, assassinava-os e oferecia a suas almas a seu amo Satanás. Dizia-se que esta jovem adorava o demónio e todos os espíritos negros do mal e tudo o que estes representavam. Pior: pensavam que essa jovem era a filha do casal que tinha sido expulso pelo padre e por toda a população por se dedicarem a cultos negros.
Ao ouvir tal, perdido na inocência de uma paixão em conflito com os rumores encontrei um dos meus amigos de infância. Logo lhe contei tudo o que se passava: a paixão que consumia a minha alma, o amor por aquela doce criatura. Ele ouviu atentamente e avisou-me que os rumores poderia ter alguma razão de ser, que o melhor era não a procurar nunca mais.
Insensato, ofuscado pela paixão, cego com o medo de a perder imaginei que este apenas dizia isto por inveja da minha felicidade. E com a fúria própria dos loucos perdidos, rasguei a nossa amizade com insultos e sepultei-a até ao resto dos nossos dias.
Contudo o medo da verdade toldava o meu sentir e passaram-se meses até que voltei à praia. Temendo confronta-la com os rumores, descobrir que são mentira, ofende-la e perde-la para além da eternidade. Ou então descobrir que os rumores... não o são, mas são apenas o relato da verdade...
Mas uma dia, sexta feira treze, cego pela saudade e pelo desejo de sentir os seus doces lábios corri para a praia. Pensava que não a iria encontrar, pois nunca antes estava às sextas-feiras.
Mas nesse dia encontrei-a. E ali estava ela deitada na areia escaldante qual sereia trazia pelo embalar das ondas. E louco corri para o seus braços afogando a saudade num lento e doce beijo.
Ao longe batia o relógio da igreja desprendendo doze lentas e lânguidas badaladas e a lua de prata que brilhava no seu trono, cobriu-se de pesadas trajes de neblina e um frio glaciar desceu sobre a noite.
O beijo de doce mel tornou-se amargo. E então os meus olhos abriram-se e vi a sua face: onde antes vivia uma flor morria agora uma caveira, os seus cabelos haviam desaparecido e os seus olhos eram apenas dois buracos negros sem expressão.
Debatendo-me para libertar-me daquele odor a morte e perdição empurrei-a, lutei pela minha vida... Assim que senti uma pouco de liberdade fugi... Corrido como o vento, deixei aquela praia atrás das costas, e nunca mais aí voltei...
Ainda hoje temo sucumbir à doce tentação de aí voltar, de cair na malha de sedução daquele pesadelo e de sucumbir à sua miragem e mergulhar para a eternidade num abismo de perdição...